* Valéria Borborema
Diante da pandemia da Covid-19, doença causada pelo Novo Coronavírus, o cotidiano mudou em praticamente todos os países do Globo. Os impactos são coletivos e individuais, portanto.
Coletivos, quando o surto afeta, por exemplo, o trabalho, agora legitimado em vários modelos. Um deles é o teletrabalho ou "home office", executado em casa, seja por telefone ou pela internet. Assim exige o isolamento e/ou quarentena, para efeito de se evitar a disseminação da peste que assombra o planeta.
Mas os trabalhadores também são encorajados a antecipar férias anuais ou férias-prêmio, no caso do setor público; ou mesmo reduzir jornadas e os próprios salários. Não importa! A ordem é evitar o contato e, por conseguinte, o contágio. Até agora a forma mais eficaz de combate.
O que fazer ante o corte abrupto das relações sociais? Lacan já dizia que o sujeito emerge do Outro, enquanto espaço significante. A família, na visão do psicanalista francês, não é necessariamente o lugar de formação do organismo. Nada disso! Família é o locus por excelência da fundação do sujeito, por meio da transmissão simbólica, da organização filial e da especificação das funções Mãe e Pai. Enquanto à mãe cabe dedicar ao filho cuidados particularizados, nem que seja a partir das próprias faltas; ao pai cabe a interdição que, em Psicanálise, significa lei, quando se desaloja o Desejo Materno para outro lugar que não a criança. É o "não" que permite ao sujeito advir pelo significante no desejo que emerge da falta estrutural.
Mas Lacan previra (pressentira), lá nos idos de 1970/1980, uma "mudança no espírito do tempo". O mundo passava por transformações que o tornavam distinto do observado, por exemplo, na época de Freud, inventor da Psicanálise, que, aliás, saboreou o ocaso da era Vitoriana.
Lacan percebeu a queda do falocentrismo, notada na precariedade simbólica (convenções, floresta de significante, tradição), na emergência imaginária (imagem, papel de cada um na sociedade, sentido) e na irrupção do real sem nome (campo pulsional). Daí que a família experimenta mudanças profundas. A velocidade com que a família contemporânea faz-se e se desfaz – vários modelos como monoparental e homoafetiva, por exemplo - tem influenciado o sujeito, que, a seu lado, sinaliza não saber ao certo se utilizar do Nome-do-Pai, mecanismo de instauração desse sujeito, na regulação das pulsões, que insistem, invadem e exigem satisfação, e das relações sociais.
Em situações-limite, como a que se abate sobre o Brasil e o mundo, hoje, a evidência de um contexto de fragilidade subjetiva, que aponta para um sujeito sem referência, desbussolado, contribui para a eclosão ou agravamento de sintomas como pânico, ansiedade, depressão, drogadicção, compulsão, astenia... No âmbito da singularidade, há que se alertar para esses e outros sintomas.
Freud, num de seus textos mais brilhantes, "Mal-Estar na Civilização", elenca três fontes de sofrimento básicas: desastres naturais, relações interpessoais e finitude do corpo, da vida, diante dos quais o humano geralmente capitula.
No caso do atual momento, cumpre ressaltar especialmente a finitude do corpo, com doenças que ameaçam a existência e torna a morte eminente.
Já Lacan aponta três grandes paixões humanas: ignorância, amor e ódio. Atenção máxima para a ignorância, que se manifesta no “não querer saber”, por meio do recalque e da negação, do desconhecido, do não previsto. Só que nem o recalque nem a negação conseguem sobrepor-se inteiramente ao desconhecido. O que gera ódio pelo fracasso diante do resto que permanece. Mas há outra maneira de lidar com o desconhecido, que é o amor ao conhecimento, à pesquisa, “o querer saber”.
Pois bem! Nota-se enorme apelo à ignorância no atual contexto. O psicanalista Contardo Calligaris aponta justamente para isso ao citar a negação como a grande patologia a ser cuidada em meio à pandemia de Coronavírus. Lacan adverte que a negação é a tentativa de fazer existir o real da ausência, na esperança de se desalojar o significante e lançá-lo à condição de signo. O que ocorre, no entanto, é o contrário. O significante não desaparece, e, sim, multiplica-se. Daí que quanto mais se afirma que algo não está ali, mais esse algo vai estar ali. O resultado é o sofrimento frente ao que insiste pelo significante, apesar de todas as tentativas de negação.
O ódio também deve ocupar espaço na discussão. Jacque-Alain Miller revela que a ira é a tentativa de se atingir o objeto “a”, algo do sujeito no Outro. Enquanto o amor “é dar o que não se tem”, é se tornar a falta do Outro.
Como agir, então? A situação demonstra dois extremos que merecem atenção.
Senão, vejamos.
O sujeito pode se deixar abocanhar na armadilha do ciclo vicioso de informações, que chega em verdadeiras enxurradas. A orientação, por exemplo, de lavar constantemente as mãos, de limpeza de modo geral, pode deflagrar uma compulsão, uma obsessão, de modo que o sujeito fique à mercê do medo, do pavor de pegar a doença. O que pode levá-lo à fuga da realidade e do ambiente que o acolhe. Tudo à guisa de muito sofrimento.
Na outra ponta há os que negam, não enfrentam a questão, não tomam os cuidados necessários e se expõem loucamente, sem quaisquer limites. Um risco para si e para os outros.
Freud ensina que todo excesso, para mais ou para menos, requer atenção especial, precisa ser lido, interpretado na singularidade. Deve-se buscar ajuda profissional.
No mais, para um período de isolamento e/ou quarentena mais palatável, diversifique as atividades, realize, dentro do possível, seu desejo. Use e abuse da arte, do esporte para espairecer. Quem sabe se alcance aí a sublimação, mecanismo de defesa do Eu que, sem recalque, redireciona a pulsão do objeto original para outro. Sem grandes solavancos.
* Psicóloga Clínica