
Foto: Esfinge de Tebas - Cadela Cantora
* Valéria Borborema
Os primeiros dias de calamidade pública no país, por conta da pandemia de Coronavírus, tem sido de choque para a população.
De um dia para o outro, os brasileiros passaram a lidar com uma realidade de guerra. Comércio, indústria, faculdades, escolas, barzinhos, parques, clubes, igrejas e serviço público fechados. Todo mundo sentenciado à clausura, sob olhar atento da Polícia Militar.
A (mal)dita rotina de repente cessou. No lugar o vácuo, o nada. Tipo filme de terror. Desses que se pensava fosse pura ficção, de tão absurdas pareciam as cenas. Anos-luz da realidade.
Horror! Incredulidade! A sensação que rosca e se enrosca no desamparo, na falta de chão. O porvir passou a ser sinônimo de medo, pavor... as certezas que se julgava ter, esfacelaram-se.
No horizonte o inimigo que ninguém vê! Mas que está à espreita. Pronto para dar o bote!
"Decifra-me ou te devoro", parece dizer o Novo Coronavírus. Ou seria a Esfinge de Tebas, a Cadela Cantora. Os que não conseguiam decifrar o enigma lançado ao vento eram dizimados. E a peste seguia a devastar Tebas, sob os auspícios de Hades, deus dos mortos, reino do silêncio perpétuo.
Diante da tragédia que se constrói dia após dia, os humanos buscam subterfúgios para, quem sabe, escapar do opróbrio.
Do ponto de vista do psicanalista Jacques Lacan, o simbólico é usado como defesa contra o real sem nome, o estranho a si mesmo.
Especialmente no âmbito das mudanças no espírito do tempo, notadas por ele ainda nos anos 1970, no ocaso de sua vida. Precariedade simbólica (tradição, convenções, floresta de significantes), emergência do imaginário (sentido, imagem, papel de cada qual na existência) e irrupção do real (pulsional). Tudo no contexto da Queda do Falocentrismo, expressa na Decadência do Pai.
O vazio, referência da clínica contemporânea, é o locus por excelência da criatividade significante, da suplência.
Daí que, com a deflagração da Covid-19, doença causada pelo Novo Coronavírus, emergiram do lodaçal da insegurança tentativas de tapear o insuportável da dor de existir.
Foi assim que, contra o apelo do bom senso, pipocaram manifestações de rua que, além de apoiar o governo e dilacerar verbalmente Legislativo e Judiciário, acenderam o pavio de ironia ao vírus que assombra o planeta. Máscaras cirúrgicas viraram acessórios da morbidez. A Besta que arreganha os dentes e gargalha.
Negação e desafio à realidade que também podem ser detectados no correr da História.
Como durante a II Grande Guerra (1939-1945). Em meio ao espetáculo grotesco de beligerância, grandes cidades da época, Paris e Berlim, por exemplo, exibiam a noite efervescente.
Do ar fétido dos buracos urbanos, que costumavam driblar os bombardeios cada vez mais violentos, subia o odor nauseante, fruto da mistura de bebida, comida e fumaça de cigarros contrabandeados. Gritos histéricos que se assenhoravam de corpos trepidantes a seguir o ritmo embrutecido dos acordes elevadíssimos.
Os objetos voz e olhar assumiam o protagonismo para que da balbúrdia despontassem pedidos desesperados de socorro.
Era a trombada com o Real!
* Psicóloga Clínica